20 abril, 2010

Pecado (II)

por Aviad Kleinberg
A primeira parte está aqui e a segunda parte disponibilizada pelo Gondim segue:

Não existe pecado sem contexto. E não existe escrita impessoal sobre o pecado. Tudo o que se escreve sobre pecado é autobiográfico, mesmo quando o escritor analisa idéias abstratas ou discute os pecados alheios. Este livro não é uma confissão. Até certo ponto, é um jeito de evitar confissão. Entretanto este livro lida sim, sobre mim, especialmente quando não me refiro a mim.

Quando a percepção do pecado emerge em nós? Quando o narcisismo infantil – a convicção de que tudo pertence a nós, e que todo prazer e desejo negado se constitui um escândalo moral – se transforma em sentimento de culpa ou em sensação de que praticamos algum mal aos olhos do Senhor e dos homens? Freud cogitava que esta descoberta emerge junto com o Ego, e chega quando a criança nota que não é a carne da mãe. Quando a separação mãe filho é definitiva e irreparável. Sentimento de inadequação constitui um elemento básico da personalidade humana. Nesse momento entendemos que não somos onipotentes. Reconhecemos os fracassos mortais primários – fraqueza, solidão e desespero – pois são estes (não orgulho, inveja e ódio) que estabelecem os primórdios do pecado.

Nós nos medimos diante dos nossos sonhos impossíveis de perfeição; diante do paraíso delirante (sermos sempre sãos, sermos sempre sem temores e sem dores, sermos sempre satisfeitos) e somos achados em falta. Descobrimos então que fomos punidos. Todo sofrimento é punição. Partimos então para descobrir as razões para este castigo. “Deus misericordioso, pecamos contra TI. Tem compaixão de nós”.

Mas está certo começar assim, com uma reflexão universal – não com uma pessoa em particular, Aviad Kleinberg [o autor], mas com Todo homem? É honesto começar com generalidades, sem os particulares da memória, sem o corpo, sem o corpo das evidências? Certamente isso está errado. Não existe pecado sem contexto, nenhum escrito sobre pecado escapa de ser autobiográfico.

Na escola primária tive um amigo de classe chamado Micky. Ele era mais solitário do que eu e muito mais fraco. Eu fui agraciado com uma força física considerável e com um talento para o sarcasmo. Isso não me ajudava a ter amigos, mas era suficiente para paralisar meus adversários. Enquanto tentávamos ser (cada um de acordo com suas possibilidades e inclinações) caricaturas do macho israelense típico, Micky permanecia uma criança meio afastada, vivendo autisticamente em seu próprio mundo. Ele nunca tentava ser como os outros, e nunca desafiava qualquer convenção como eu fazia de tempo em tempo, quando me enfastiava com os meus próprios esforços de tornar-me aceitável.

Micky era bem ele mesmo. Rabiscava desenhos esquisitos, porém delicados, no caderno e construía cidades em miniatura no chão. Suas cidades eram um emaranhado de estradas no meio de garranchos, pedaços de madeira, postes feitos de palitos de pirulito, prédios de caixas de fósforos, e diminutas pontes que se estendiam sobre rios liliputianos de areia. Sem nunca reclamar, ele agüentava as chacotas e os ridículos que se amontoavam sobre sua vida, vindo s de toda parte. Micky sorria com seu estranho sorriso e prosseguia.

Micky construiu suas cidades em lugares diversos. Os que construiu no pátio da escola foram sistematicamente destruídos por outros meninos. Para dar vazão à criatividade urbana, Micky construiu outro vilarejo em um descampado perto da sua vizinhança, longe dos olhos dos bárbaros. Naqueles dias eu perambulava por lugares desertos, que se estendiam nas cercanias de minha cidade, Beer Sheva. Na escola era preciso ser “norte” ou “sul” [quer dizer, a geografia definia quem era rico e pobre). Eu não era nenhum dos dois. Minha família vivia no meio e eu só me sentia em casa, social e geograficamente, quando vagava pela “terra de ninguém”.

Eu caminhava sozinho por horas, desesperadamente querendo dar sentido à minha solidão, sonhando com vingança. Todo o dia esperava que algo acontecesse para ser salvo, que toparia com alguma coisa boa, a dor estancaria e meu círculo da solidão se rebentaria. A cidade em miniatura do Micky estava localizada longe do circuito dos hevre, os rapazes. Mas estava no meio do meu caminho. Esta era bem maior que as criações urbanas prévias, e se podia ver o tanto de tempo e esforço que ele havia dedicado.

Recordo-me estudando aquela construção magnífica por um tempo e logo depois a destruí. Derrubei tudo – estradas, pontes, árvores. Não penso que tenha gostado da destruição. Estou bem certo que fui imediatamente invadido por um sentimento de vergonha. Entendi que tinha me tornado semelhante aos bárbaros, os outros alunos da classe. Eu detestava e invejava ao mesmo tempo. Para Immanuel Kant, a percepção da perversidade de uma ação a transforma em um “mal radical” – um mal que não nasceu do descuido ou da imprudência, mas foi cometido com perfeita razão da falta moral que ela incorpora.

Não posso pretender que sucumbi à pressão social. Aquele ato destrutivo não era um jeito de ganhar aceitação de uma gangue. Mais tarde na vida, fui ocasionalmente pressionado a prejudicar outras pessoas – mulheres, árabes, pessoas fracas – para provar minha fortaleza, minha masculinidade, minha solidariedade ao grupo. Sempre recusei fazê-lo. Mas na escola, eu não pertencia a nenhum grupo. De fato, não pertencer era meu traço marcante. Além disso, ninguém sabia que eu havia destruído aquela pequena cidade – nem o Micky – e eu acho difícil acreditar que aquele surto de vandalismo impressionasse os meninos. Aquilo foi uma transgressão solitária. Anos mais tarde, deparei-me com uma passagem famosa de Santo Agostinho em suas “Confissões” onde ele conta o episódio de roubar peras em sua cidade natal Tagaste (atual Algeria). Há alguns anos cheguei a traduzir as “Confissões” do Latim para o Hebraico. Eis a descrição do Livro 2:

Havia uma árvore de pêra perto de nossa vinha carregada de fruta, embora não fosse atraente nem na cor nem no gosto. Eu e uma gangue de adolescentes saíamos tarde da noite (em nosso caminho pestilento) depois que tínhamos continuado nosso jogo pelas ruas, saíamos para derrubar os frutos da árvore e roubar as peras. Carregávamos uma grande carga de peras. Mas elas não eram para nosso deleite, mas para serem jogadas aos porcos. Mesmo que comêssemos algumas, nosso prazer estava em fazermos o que não era permitido. Assim era meu coração, oh Deus, assim era meu coração. Tu tiveste piedade quando ele estava no fundo do abismo. Agora me permita contar-te o que meu coração buscava ali, pois me tornei maligno sem motivo. Eu não tinha motivo para minha malignidade a não ser a própria malignidade. Fui maléfico, e amei sê-lo. Amei a auto-destruição. Amei a minha queda, não o objeto pelo qual eu caíra, mas a queda em si. Minha alma depravada saltou de teu firmamento para a ruína. Estava buscando não ganhar alguma coisa por meios vergonhosos, mas a vergonha por ela própria.

Deixando de lado, por um momento, as questões psicológicas e éticas levantadas pela descrição de Agostinho, quero focalizar a suposição subjacente a este texto. Agostinho está certo que as regras do jogo ético são claras e que um homem que seja honesto consigo mesmo sempre conhece o peso específico de cada ato seu. Para ele, não há negações freudianas; só existem mentiras. E mais, o mal nunca é banal; mas sempre radical. Crimes de menor potencial ofensivo, como roubar peras sem nenhum valor, podem ser insignificantes no que tange as conseqüências, mas a motivação que subjaz a elas não é, na verdade, muito diferente do que a que nos empurra para crimes horrorosos. Nós amamos o mal per si. E as nossas faltas nunca estão, verdadeiramente, escondidas. Deus caminha em nossos jardins e o Seu espírito paira sobre nossos abismos. Ele vê, lembra e acerta contas. A presença intrusa de Deus no mundo agostiniano paradoxalmente transforma o mal intencional em um ato heróico, trágico por ser essencialmente sem esperança. É impossível contestar a tirania da justiça divina, impossível escapar da punição. O pecador ocasiona sua própria ruína em nome de um desejo impossível e absurdo de liberdade.

“Portanto, naquele ato de roubar qual foi o objeto do meu amor, e de que maneira eu viciosa e perversamente imitei o meu Senhor?”, assombrava-se Santo Agostinho.

Meu prazer de quebrar tua lei pelo engano era porque eu não podia quebrá-la pela força? Eu agia como um prisioneiro com liberdade restrita que faz sem punição o que não é permitido, para dar uma impressão que possui uma frágil aparência de onipotência? Aqui está um escravo fugindo de seu senhor, ansiando por uma sombra (Jó 7.2). Que podridão! Que vida monstruosa e que abismo da morte! Seria possível ter prazer no que era ilícito por nenhum outro motivo senão quer não era permitido?

Pecado pode ser a expressão de um desejo ardente por liberdade, por liberação de quaisquer regras, mas as regras de nosso próprio desejo. Em suas manifestações mais heróicas, se torna um ato de criação – criação do self individual ao preço de ser expulso do paraíso banal. O Satanás de Milton é um herói trágico que só pode criar pelos meios que o Todo-Poderoso deixou para ele: destruição, especialmente autodestruição.

Mas para que um seja o Diabo, tem que haver um Deus; para que um se revolte, tem que existir uma autoridade para se levantar contra. Quando as fronteiras estão borradas e os valores perdidos, quando Deus morre sem deixar um herdeiro, então o heroísmo desaparece do mal, e é daí em diante não mai s um aguilhão à resistência corajosa ou à autodestruição. Nada sobra senão vazio e dor.

Observando as conseqüências de minha ação, eu estava realmente sobrecarregado com uma sensação de vazio e de vergonha. Eu não senti nenhum orgulho, nenhuma libertação. Eu não amei o mal em si. Agi sem sentir nenhum prazer, mesmo o mais efêmero ou ilusório. Só havia vazio e vergonha.

Todavia, meu vandalismo era mais repugnante que um roubo de peras sem sentido. Agostinho havia escolhido um relato relativamente trivial, uma história sem vítimas. Claro que o roubo é repreensível, mas fica difícil de acreditar que os vizinhos de Agostinho sentiram falta de suas peras mal formadas e sem gosto.

Se pedissem permissão, eles provavelmente deixariam Agostinho e seus camaradas colherem as peras até se fartarem. Eu, em contraste, havia ferido alguém: eu tinha magoado Micky. Embora não fôssemos amigos, ele nunca me fez mal algum. E mesmo sem saber quem lhe fez mal, com certeza ele foi ferido.

O Bispo de Hipona, também, sentiu que alguém se sentiu prejudicado pelo seu ato – não o proprietário das peras, mas Deus. Dá para supor que Deus sofreu menos com o roubo de Agostinho do que Micky com minha destruição de sua cidade em miniatura.

Afinal, o próprio Deus tem sido conhecido por destruir cidades de tempo em tempo. Recordo-me bem que até ali eu nunca fizera nenhum mal ao Micky. Por que, então, o fiz? Não sei. Talvez quisesse sentir que podia, nem que fosse por um momento, ser um abusador e não um abusado. Talvez quisesse sentir a sensação do poder arbitrário, a capacidade de ferir alguém sem ter que prestar contas.

Quando perguntaram a Sir Edmund Hillary porque ele havia escalado o Monte Everest, ele replicou: “Porque estava lá”. Por que eu havia destruído a cidade em miniatura do Micky? Porque estava lá – porque eu e Sir Edmund tínhamos o poder de fazer a nossa vontade.

Envergonho-me deste relato precisamente porque a perversidade que ele comunica é imbecil. Eu estava exercendo força sem prazer. Eu podia ter achado outras formas proibidas de procurar prazer. Eu podia ter roubado coisas que desejava, comprado prazer sexual ou me vingado de meus inimigos.

Não fiz nada daquilo. Se esta história tem me assombrado por tanto anos, deve ser porque ela confirma o que Agostinho afirma – que a predisposição de fazer os outros sofrerem, de destruir, é uma parte integral de nossa natureza. Porque sem dúvida eu continuo a destruir cidades pelo meu caminho, obedecendo alguma inclinação para errar. Porque mesmo quando penso que minhas intenções são boas, sou capaz de ser para alguém o que meus torturadores foram para mim.

Uma pessoa consegue separar, como eu fiz, prazer da moralidade? É permissível usufruir da fruta proibida? Como acertar o equilíbrio entre o desejo de sempre fazermos o que queremos e o preço que esta liberdade custa para os outros? As respostas que as sociedades humanas dão a esses questionamentos determinam o seu caráter e o seu perfil.

Essas respostas não resultam apenas em discussões racionais. Elas são formuladas e reformuladas de acordo com necessidades, tendências e acidentes da história; de acordo com as boas ações que nos orgulhamos e vilanias que nos envergonhamos. Este livro lida com estas questões. E considera as variedades de pecado, a natureza multifacetada da culpa e a interminável esperteza das auto-justificações.

Não existe escrito impessoal sobre o pecado. Comecei falando de mim. Falar do meu pecado contra Micky não foi acidental, assim como não foi acidental que Agostinho escolheu relatar como ele roubou peras inúteis. Algumas espécies de lagartixas desenvolveram um sistema peculiar de sobrevivência: elas cortam o rabo quando estão em perigo. A cauda abandonada pode atrair a atenção do predador, que dão uma dentada no petisco e perdem o prato principal.

Envergonho-me de minha transgressão, assim como Agostinho se envergonhou. Mas cada um de nós – cada um de vocês, queridos leitores – esconde esqueletos ainda mais mal-cheirosos em nossos armários. O restaurante humano serve, na grande maioria, apenas cauda. Mas o leitor que examinar o rabo que abana cuidadosamente, sem pressa de morder, aprenderá várias coisas sobre o corpo do qual ele foi separado.

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