28 outubro, 2010

A Criação e os Apascentadores - Um Conto

por Ariovaldo Ramos
No princípio estava tudo: era a família: o pai, o filho e o espírito que os unia, que carregava, em si, a maternidade, e que é uma pessoa. A família estava em constante dança, feliz, alegre e completa em si mesmo.

O filho pediu ao pai a possibilidade de estender esse amor. Como um deus não pode se reproduzir, por que deus, a família , por definição, existe desde sempre e para sempre, isto significaria criar o que pudesse ser amado e amar. Portanto, à imagem da família. Uma família semelhante. O pai concordou em criar outra família, expressão da família eterna.

E a família, que até então era só e suficiente, passaria a ser a família original, ainda que totalmente outra.

Seres, para poderem amar, precisariam ser livres. Liberdade, entretanto, é algo que só um deus pode sustentar, por causa da responsabilidade que demanda, mas, se a família semelhante já surgisse habitada pelo espírito que habita o pai e o filho, não seria livre. Criaturas são, por definição, finitos, logo, só podem ser tudo o que podem ser, ou seja, apenas perfeitos para, não perfeitos em si. Porque só um deus é perfeito em si. Seres finitos, livres... A liberdade dessa outra família se voltaria contra a família original. A família semelhante romperia com a família original! Um impasse!

A família original perdoaria porque é amor e o amor só age assim. Mas, havia o princípio de justiça sustentado pela família original, que não poderia ser descartado e que nenhuma criatura pode satisfazer; o que inviabilizaria a criação. Se a família decidisse criar a família semelhante, teria de satisfazer a demanda do princípio da justiça.

A família semelhante, portanto, não poderia ser criada no mero espaço da família original, tinha de ser num espaço a ser criado primeiro, o espaço do sacrifício da família original. A rigor, por ser criação, já o demandaria, porque o que não pode se sustentar não pode existir, pois fere o princípio da justiça, cuja demanda tem sempre de ser satisfeita, sob a pena da insustentabilidade. E decidiram que assim seria, o filho se prontificou a representar a família original e, para que houvesse criação, no seio da família original se fez um ambiente, até então imponderável, o ambiente do esvaziamento.

O filho se esvaziaria para satisfação do princípio de justiça, num “qüid pro qüo”, (uma coisa pela outra) o que o levaria a entrar na criação para anunciar o custo da criatura, e, uma vez na criação, teria de manifestar da forma mais pungente possível o custo da criação, demonstração necessária por causa do agravante da ruptura e, portanto, da necessidade do resgate. O que deveria ter sido um sacrifício teria de ser sacrificado.

Tudo seria feito no filho em estado de sacrifício, e só o filho falaria pela família original.

E a família original experimentaria o que parecia impossível: por amor à criatura, amor que, no pedido filho, se estabeleceu na família original, porque já estava lá desde sempre, assumiria o sacifício.

E tudo se fez num ambiente ainda mais imponderável: o sofrimento!

A família semelhante se desfaria como família, perdendo-se na confusão entre identidade e individualidade. Perdendo o senso de comunidade se perderia no individualismo. A ruptura com a familia original a afundaria na escuridão e na maldade. E o que deveria ser- lhe servo, seria seu algoz.

De família semelhante passaria a ser o conjunto dos que perderam a noção da família.

Seria uma situação impossível de sustentar, se o sacrifício não fosse suficiente para permitir que a família original emprestasse bondade para os membros da família semelhante, garantindo a sua sobrevida.

A família original interferiria na história do conjunto dos em perda, sem determinismo, mas com determinações que garantiriam o resgate do mesmo. Como a família original não pode ser surpreendida, sempre saberia onde e quando. Assim, a família, que resolveu tudo desde o começo, pôde anunciar como seria o fim.

A família original criara: criaturas não vivem no eterno, só no tempo; e mesmo tempo que não tenha fim não é eternidade, pois eternidade é onde qualquer noção de tempo é ausente, por definição. No tempo, a família original contaria com membros do conjunto, que receberiam luz suficiente para apascentar os que, como eles, voltariam a reconhecer a família original, por serem tomados pela consciência de que eram membros da família semelhante e, como tal, deveriam viver.

Esses cooperadores da família, homens e mulheres, receberiam vários nomes: visionários, loucos, patriarcas, sacerdotes, juízes, ungidos, profetas, apóstolos, presbíteros, diáconos, pastores; mas, sempre seriam, tão somente, cooperadores da família original e apascentadores da humanidade. A missão deles: a retomada da família semelhante.

Esses amigos da família e servos da humanidade viveriam de várias maneiras: como chefes de clã, como nômades, como andarilhos, como ermitões, como fugitivos, com protocolo, sem nenhuma noção de indumentária, no deserto, nas aldeias, de cadeia em cadeia, de cidade em cidade, numa comunidade ou tendo o mundo como paróquia, mas sempre segundo o coração da família original.

Desses membros do serviço da família original, muitos seriam o que se chama de bem-sucedidos, outros morreriam ainda jovens, outros carregariam para sempre as marcas da tortura, alguns seriam serrados ao meio, uns passariam pela cruz como o seu mestre, outros veriam o fim da sua fé, alguns morreriam na esperança, uns viveriam em família, outros a perderiam para poder viver o que tinham de viver, mas todos perseguiriam a mesma visão, e seriam mais do que qualquer sistema pode sustentar, mais do que qualquer mundo consiga dignificar. Eles só queriam ser recebidos na glória!

Então... Quando tudo não precisava de nada, a família falou: Façamos o homem à nossa imagem-semelhança, e tudo se fez de modo que a soberania da família fosse mantida e a liberdade humana não fosse aviltada. Selá!

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