19 janeiro, 2010

O Haiti, a mão de Deus e algo que não encaixa


por Alex Carrari

Não demora muito a de se pronunciar no meio protestante conservador alguma voz arbitrando às avessas em favor de Deus o mando, ou pelo menos a supervisão divina na catástrofe que se abateu sobre o povo haitiano. Sacando de qualquer manual de teologia sistemática uma pilha de versículos que legitime expressões como ira, cólera, vingança, juízo, relacionados a Deus no exercício da sua implacável justiça, devem em breve chuviscar em alguns púlpitos. Para estes, endossar qualquer dessas expressões é tão fácil quanto colocar a cabeça no travesseiro e dormir sossegadamente, crente que os fragmentos com que monta sua teologia - sempre em tese -, bastam por si mesmos.

Fragmentos que servem de argumento, que podem até silenciar para si os gritos das vítimas durante seu anestésico e proposital sono do esquecimento, mas não lá no mundo real, pelas ruas, debaixo dos escombros, cobertos com farrapos ensaguentados, com membros gangrenados, morrendo de sede, fome e medo. Lá os gritos não silenciam. Lá não há o sono do esquecimento.

Não é preciso discorrer os argumentos sobre os quais descansam estes que ao invés de silenciar e chorar, o que seria mais digno e humano, preferem lançar sobre Deus todo o ônus da tragédia. Não é preciso, pois, basta vasculhar o imaginário mítico arcaico e medieval para perceber que os acovardados sempre usaram do mesmo expediente para camuflar uma indiferença patológica em relação à vida, com uma pretensa reverência a Deus.

Neste caso o que importa é que seus argumentos são o que basta para seu modo de vida evasivo, denunciado pela incoerência entre o belo arranjo teológico em contraste com a dor humana, onde qualquer teoria que não tem liga com a vida se dissolve. Constroem um suntuoso castelo, mas eles mesmos, não moram sequer na pocilga nos fundos do quintal (Kierkegaard).

Também não é necessário discorrer sobre como coadunam a ideia de justiça divina com o fato das tragédias. Basta lembrar que (para estes) em última análise Deus tem algo a ver com isso, e que, de alguma maneira que nós vermes ignorantes, que só usamos 10% da nossa cabeça animal, estamos distantes de compreender. Seja, Deus tem um propósito maior em causar dano às pessoas, não sabemos qual, mas tem.

Promovem com isso um fatalismo no qual tudo já está por ordenação divina pré-determinado, inclusive e principalmente tragédias como a do Haiti. Algo como uma imensa rede armada pelo próprio Deus, onde por Sua vontade fixou o que os homens devem fazer, sendo a liberdade uma ilusão, pois, habitamos prosaicamente um mundo de antemão programado (José María Mardones).

Se a Razão não tivesse encarnado seria tão mais fácil resignar e aceitar passivamente o fatalismo, calcado sobre a imagem de um Deus ambíguo, atacado e furioso com a raça humana, despejando diariamente raiva e disciplina na forma de assombrosas tragédias.

Encarnar não quer dizer simplesmente encher temporariamente um corpo com alma. Encarnar significa se fazer corpo nos embates da vida que produzem cicatrizes que a ressurreição não apagam, pois, são as consequencias de se fazer um de nós.

Encarnar é criar uma identidade. Criar identidade não significa se auto afirmar como ser-em-si, opaco, maciço, incólume. Antes, criar identidade é reconhecer-se um ser coletivo, pelo envolvimento com outros da mesma espécie, tornando um ser-para-os-outros, para todo o sempre.

O envolvimento do Cristo foi proféticamente antecipado pelo profeta que disse que ele tomou para si as dores que nos afligem, fazendo seu o nosso drama (Is 53.4).

Se ele toma para si nossas dores, como pode então ser Deus à causá-las? A não ser que estejamos numa brincadeira cósmica em que o papel que cada um interpreta seja fictício e toda dor e lágrima é como prêmio para o Grande Jogador. Embora a quem se sinta confortável nas mãos de um Deus que joga com os destinos das pessoas, viver debaixo dessa lógica nada mais que é que um mecanismo de fuga.

Como então alinhar a concepção de justiça divina ligada à imagem de um Deus belicista e vingativo, em comparação com a justiça do Reino a ser buscada anunciada por Jesus?

Se por um lado o conservadorismo de extrema direita diz que Deus é soberano e ponto final, por isso mata, aleija, faz mendigar o pão a quem Ele bem entende, por outro lado, Jesus desfaz essa lógica insana pela prática da compaixão e do envolvimento com os outros. É que para Jesus justiça tem a ver com cuidado, preservação e restauração da vida, libertação das amarras sociais e das estruturas malignas de coerção que desumanizam o humano.

Como harmonizar a ideia de um Deus que mata pessoas de fome, enquanto Jesus se compadece de uma multidão faminta, reproduzindo pães e peixes para lhes aliviar o vazio na barriga?

Como pensar que Deus tira arbitrariamente a vida, se Jesus, condoído, a devolve?

Como acreditar que Deus se utiliza de doenças e tira proveito da dor humana para atingir Seus fins, se Jesus sara a dor, curando quem se põe em seu caminho?

Como viver debaixo da supervisão de um Deus encolerizado com a raça humana enquanto Jesus caminha na contramão, pregando e vivendo a justiça em outras categorias, cuja ética é seu mais legítimo dever?

Se o homem que é mau sabe dar boas dádivas, quem dirá Deus (Mt 7.11). No caso do Haiti a ajuda humanitária que chega de todas as partes do globo fica na conta de quem, do Deus que é bom ou do homem que é mau? Parece que os papeis se invertem caso seja Deus o causador, ou o supervisor dessa tragédia em Porto Príncipe. Enquanto Deus esmaga e condena à danação, gente que já vivia num inferno existencial infindável, o homem cuida e tenta amenizar a dor de quem na vida só recebeu males. Se realmente é assim, o homem então está numa qualificação superior a Deus, já que mesmo sendo mau consegue sentir compaixão pelo semelhante, mesmo que tardiamente.

Faço minhas as palavras de Paulo Roberto Gomes em O Deus Im-Potente, quando diz que o Deus que Jesus nos apresenta não é um poder frio e distante que podemos acusar quando somos atingidos pela dor e pelo mal, mas alguém que, em Cristo, se tornou Deus humano, gritando conosco, intercedendo por nós quando silenciamos na angústia, quando protestamos contra o destino através do nosso grito, porque amamos e confirmamos a vida.

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