16 fevereiro, 2010

Espiritualidade fora da Moldura

Por Ricardo Gondim
Enquanto tentam enganar-se com promessas de homens, tapam os olhos para aqueles que realmente padecem. Como um pai que prefere não acreditar que seu filho está entregue às drogas.
No meio desse cenário eis que surge uma voz louca, que fala à loucos. Se por um segundo deixar de ouvir o que agrada aos seus ouvidos humanos e ouvir o que de fato é verdade, então no meio da loucura verá a sensatez.

Brilhante texto do Gondim, como se precisasse dizer algo sobre o que é escrito por ele.
Espero que gostem,

Em Cristo, Duda.


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Espritualidade fora da moldura.
Ricardo Gondim


Parecido com o Chico Buarque, posso dizer que meu pai era paulista, minha mãe cearense, meu avô paterno, cafeicultor do interior de São Paulo e o materno, comunista de Fortaleza. Papai era professor de história e agnóstico; mamãe, artista plástica e levemente cristã - temendo a morte, ela se converteu ao cristianismo em seus últimos meses de vida. Cresci católico, emigrei para a Presbiteriana e acabei pentecostal. Eu também "vou na estrada há muitos anos".


Depois que inteirei 50 anos de vida, iniciou-se outro momento em minha peregrinação. Passei a questionar certas lógicas da religião que aceitava desde a adolescência. A princípio, inquietei-me com os valores éticos que percebia embutidos em diversas empreitadas missionárias. Depois, revoltei-me com a prepotência estadunidense na cosmovisão e colonialismo religiosos. De repente, os simplismos dos sermões me aborreceram. Mas o caldo entornou mesmo com as "Marchas para Jesus", com os teleevangelistas oferecendo milagre a granel e com falta de escrúpulos dos mercadejadores da fé de usarem os desvalidos para se autopromoverem.

Embora nenhuma dessas razões isoladamente fosse capaz de me fazer abandonar o barco do movimento evangélico, o sofrimento universal me esbofeteou, pedindo explicações que eu não conseguia dar.

Tudo começo quando caminhei pelas ruas de Mumbai (antiga Bombaim) e vi um mendigo, totalmente nu, deitado numa sarjeta. O pobre dormia na lama, mal respirando. Aquela cena me roubou o sono à noite, perturbou-me por meses depois que retornei ao Brasil, e ainda permanece na retina do meu espírito. O que as minhas lógicas diziam sobre a sorte daquele "outcast" não foram suficientes para acalmar a angústia que nascia em mim.

O primeiro pressuposto teológico que ruiu foi o da Providência. De acordo com esse alicerce calvinista, Deus determinou, na eternidade passada, todos os eventos, todos os detalhes do andamento do universo que ele criou. Com plena sabedoria, Deus não só estabeleceu, como preserva o que existe para que a sua vontade sempre se cumpra.

Foi aí que pensei: se todos os mínimos eventos foram predeterminados por Deus, aquele mendigo jaz na imundície porque esse foi o quinhão divino para ele. Continuei e levei às últimas conseqüências meu raciocínio: Aushwitz, Ruanda e todos os genocídios, também fazem parte da engrenagem providencial, e vão trazer maior glória a Deus na eternidade. A partir desse evento, passei a duvidar se o que resta à humanidade é repetir pela fé que "Deus sabe o que faz". Algo dentro de mim diz que não, mil vezes não.

Comecei a estudar a Teodicéia - Teodicéia é um termo inventado no século XVII para lidar com o impasse do sofrimento humano diante da onipotência de Deus. A palavra é composta por duas raízes gregas: theos, que significa Deus e dikaios, que significa justiça. Teodicéia, portanto, é uma disciplina da filosofia que procura entender como Deus pode ser ao mesmo tempo justo e bom frente a tanto sofrimento, num mundo que ele criou e do qual é soberano.

A Teodicéia tem como marco o tratado que Gottfried Wilhelm Leibniz escreveu para conciliar três afirmações distintas:

Deus é Onipotente.
Deus é amor – Ele ama com perfeição.
O sofrimento do mundo criado por Deus é pavoroso.

Há um paradoxo irreconciliável nestas três afirmações. Elas não podem ser simultaneamente verdadeiras. Se Deus é Onipotente, portanto, livre para fazer o que desejar, é capaz de encontrar meios de acabar com todo o sofrimento. Se Deus é perfeitamente amoroso, então não pode tolerar tanta crueldade, tanto horror, no universo. Ele é poderoso e bom, contudo, milhões padecem. Qual a solução?

Qual a explicação para o que aconteceu no Camboja? Por que Deus não interveio quando o regime de Pol Pot chacinava dois milhões de pessoas? Alguns morreram só porque usavam óculos. O regime considerava que pessoas que precisassem de óculos, também gostavam de estudar e eram intelectualizadas. Esses deviam ser eliminados porque podiam representar um perigo para a revolução.

Qual a lógica divina para permitir um disparate dessa magnitude, que destruiu tantas vidas? Por que Deus não mandou um mega desastre da natureza para impedir o avanço desse comunista maluco?

Conversei com um homem que recebeu a notícia de que o filho vai nascer com uma grave deformidade genética. Ele não entende porque Deus faz aquilo. Perguntou-me onde tinha pecado para merecer tamanho castigo e repetiu várias vezes que, se Deus tem tudo sob o seu controle, não consegue imaginar que tenha um propósito tão pesado para a sua família.

Nas articulações clássicas da teologia, esse menino virá ao mundo para cumprir um propósito (usa-se bastante um texto poético do Salmo 139 para afirmar que Deus tece cada detalhe do código genético das pessoas, inclusive as deformações graves). No instante em que escutei o relato desse pai, perguntei-me: Por que Deus, na eternidade passada, predestinaria uma criança a sofrer com uma deficiência tão profunda? Deus realmente pune a humanidade com tanta severidade só porque Adão e Eva morderam a fruta proibida? Será que Deus realmente "precisa" de uma deformidade genética para produzir maturidade em um casal?

Mas o que dizer de mais de um bilhão de pessoas no planeta que não tem comida suficiente? Será que a maldição de Deus alcança prioritariamente os pobres? Por que a cada cinco segundos uma criança morre desnutrida no Terceiro Mundo? O que Deus tem para ensinar aos brasileiros com o desprezo que produz mortes desnecessárias nos imundos hospitais públicos da periferia do Rio de Janeiro? - Devido à falta de remédios básicos, médicos são forçados a escolher quem vai ser tratado e quem vai morrer à míngua.

Já estou até esperando as ferroadas. Esses questionamentos mexem com vespeiros. "O problema do Gondim é que ele desconsidera a soberania de Deus", dirão os calvinistas. Os pentecostais repetirão que ouso minar os atributos divinos. Alguns me considerarão um tonto por afirmar que a doutrina da Providência conduz inexoravelmente ao fatalismo.

Deixei de acreditar que Deus seja um tapeceiro que trabalha às escondidas, no lado do avesso do tapete. Também abandonei que o sofrimento universal veio como castigo pelo "pecado original". Não acho que o andamento da história tenha que ser do jeito que é por alguma razão ainda obscura. Creio que a história descarrilhou. Que a vontade de Deus não se cumpriu como ele desejava. Que a injustiça, a má distribuição da riqueza, a dilapidação dos recursos naturais, o abuso do poder econômico e o egoismo que se alastrou, não representam a vontade de Deus. A desgraça daquele mendigo não aconteceu por uma "vontade permissiva", mas por fatores conjunturais perversos que produzem dor no coração paterno de Deus.

Diante dos desmantelos da história, acredito que o Altíssimo interpela homens e mulheres para se tornarem seus parceiros, agentes transformadores da história, construtores do futuro e antecipadores do Reino.

Comecei a repensar o meu edifício teológico sem o determinismo ou fatalismo da teologia clássica - que acredito mais grega que judaica - e agora vou até o fim.

Penso, inclusive, que se teólogos não fizerem o dever de casa, não reverem os pressupostos de seus discursos, o dilema do sofrimento humano continuará esbofeteando o movimento evangélico. Pior, as explicações dadas vão deformar o que se entende como bondade de Deus. Enquanto isso, muitos semelhantes a mim, terão de construir uma espiritualidade fora da moldura.

Soli Deo Gloria.

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