05 julho, 2010

A Chantagem


por David Coimbra
Poucos sabem qual é o valor de um botão de duas camadas, goleador. Gus sabia. Tinha o seu. Ademir da Guia. Azul-marinho em cima, branquinho embaixo. Pouco maior do que uma moeda de um real. As bordas do Ademir não eram retas, como as de outros botões vulgares. Eram meio arredondadas, o que dava ao Ademir botão as características do Ademir que respirava: um e outro eram classudos. Craques. Com Ademir, Gus ganhava todos os torneios do bairro. Os torneios eram disputados por botão: cada guri casava um, o vencedor ficava com todos. Assim Gus aumentava seu plantel.

Mas, um dia, Ademir da Guia sumiu. Gus estava no salão de festas, disputando um campeonato. Jogaram durante horas, ele e os amigos. No fim da tarde, quando foi reunir a delegação, ué? Cadê o Ademir? Não o encontrava em lugar algum. Os amigos ajudavam a procurar, olhavam sob as mesas, atrás da porta. Nada. Muitos guris haviam passado por ali durante a tarde. Será que alguém roubara o Ademir? Ou o botão rolou pelo chão e caiu em algum ralo, algum desvão?
Gus foi para casa sentindo o peito apertado. Passou a noite pensando no seu goleador. A mãe perguntava o que havia, ele dizia que nada. Como uma mulher haveria de compreender o valor de um botão goleador? Tomou a decisão de, no dia seguinte, vasculhar o salão outra vez. Antes de dormir, com o ardor dos seus 11 anos, implorou a Deus, Jesus e Nossa Senhora, todos juntos, que o fizessem achar o Ademir.

Na manhã seguinte, acordou cedo. Antes de tomar café, correu para o salão. Voltou frustrado: o salão só abria às 10h. A espera foi difícil. Às cinco para as 10, Gus abriu a porta de casa e teve uma surpresa. O Índio estava ali, parado no corredor.

– Índio!
Incomum o Índio bater a sua porta. Não se tratavam exatamente de amigos. Índio era uns dois anos mais velho e alguns quilos de músculos mais forte. Granjeava a fama de ser brigão. Já fora expulso de duas escolas. O que fazia ali?
– Ia procurar pelo Ademir da Guia? – perguntou.
– É. Como você sabe?
– Tenho uma boa notícia.
– Encontrou o Ademir da Guia?
– Encontrei.
– Ah! Que bom! Está aí com você? Onde achou?
– Por aí. Mas não está comigo.
– Não?
– Não. E acho que mereço uma recompensa por achar o seu goleador, não acha?
Gus arregalou os olhos. Num segundo, compreendeu: Índio roubara o seu botão e agora pedia resgate. Um sequestro! Ponderou sobre a situação: o Índio era bem mais forte do que ele. Resolver a questão no confronto físico não seria boa ideia. Cogitou de apelar para a mãe, mas logo descartou a hipótese. Seria uma vergonha. Não havia jeito. Olhou para o Índio.
– O que você quer?
– Cinco botões.
– Quê???
– Você deve ter uns 50, não vai fazer falta. Pode escolher os cinco, não me importo.
Ao ver o Índio se afastar, depois da conversa, Gus sentiu-se mal. Sentiu-se… um poltrão. Havia aprendido essa palavra fazia pouco tempo e agora era perfeita para ele. Combinaram de fazer a troca em meia hora. Encontrar-se-iam na rua.
Em casa, Gus catou seus cinco piores botões. Enquanto os colocava no bolso, dava-lhe vontade de chorar. Saiu do quarto. Ao passar pela cozinha, avistou a mãe. Parou. Ela sorriu.
– Mãe… – hesitou. – Se alguém mais forte que a senhora quer obrigar a senhora a fazer uma coisa, o que a senhora faz?
A mãe pensou um instante.
– Às vezes a força obriga a gente a fazer coisas que não quer – respondeu, por fim. – Mas às vezes é melhor sofrer as consequências.
Gus ouviu e saiu. A mãe ficou observando-o, pensativa. Na rua, Índio já estava à sua espera.
– Trouxe a minha recompensa?
Gus tirou os cinco botões do bolso e os entregou ao sequestrador. Sorrindo, Índio entregou-lhe o puxador de duas camadas. Ademir da Guia. Seu goleador.
– Fez um bom negócio – comentou Índio, jocoso, e virou-se para ir embora.
Gus ficou olhando para o Ademir da Guia, lindo, lindo, azul-marinho e branco, na palma da sua mão. Índio já se ia, vitorioso, examinando seus cinco botões. Gus sentiu os olhos marejarem, sentiu a garganta se fechar, sentiu a cabeça rodando, então soube o que fazer.
– Índio! – gritou.
Índio se voltou. Gus mostrou-lhe Ademir da Guia entre os dedos. Índio olhou, curioso. Gus ergueu o braço bem alto. Bem alto. E, em seguida, atirou o puxador na laje de pedra com toda força. O botão se partiu em dois. Índio abriu a boca, incrédulo. Gus respirava pesadamente. Fitava-o com fúria. Deu-lhe as costas. Voltou para casa. Deixou-o ali. Naquele dia, aprendeu que algumas coisas valem mais do que um botão de duas camadas, goleador.

2 comentários:

André Gomes disse...

A história tava legal, mas achei o final meio sem noção.. Hehe

Mas foi bom lembrar da infância. Jogava botão ocm meu pai e irmãos, daqueles de capinha de relógio. Muito melhor que os de caixa ou estes "goleadores" de duas camadas.

Abração maninho.

André.

Eduardo Gazola disse...

Paz vacão!

Gosto muito de saber que você visita essa casa, obrigado irmão!


Com a atitude de Gus ele nunca mais estaria sujeito à força do índio, ele perde o goleador mas também elimina seu ponto fraco.


Abração mano!